O
humanismo de um favela movie
Diferenças
e semelhanças entre o brasileiro Bróder
e
o americano Quatro
Irmãos retratando
as relações familiares
Paulo
Henrique Silva*
Desde que a
favela se tornou interesse geográfico e temático do cinema
brasileiro, no início do milênio, sua abordagem sempre representou
uma espécie de subgênero 100% nacional, principalmente depois que
Cidade
de Deus (Fernando
Meirelles, 2002) influenciou esteticamente vários filmes, nacionais
e estrangeiros. Num momento em que mostra visíveis sinais de
desgaste, esta vertente ganha outros ingredientes com Bróder,
longa-metragem de estreia de Jefferson De.
Com sua
trama passada no Capão Redondo – uma região de São Paulo que
parece desconectada com a capital, por suas diferenças sociais e
certa autonomia (ou isolamento, como preferirem) – o filme foi
saudado pelos críticos por seu intenso humanismo, ao retratar a
relação entre três amigos de infância que, vivendo momentos muito
distintos, determinam seus destinos ao se cruzarem novamente no dia
do aniversário de um deles.
Na forma
como apresenta esta história de amizade, Bróder
nos remete instantaneamente a uma produção de 2005, Quatro
Irmãos,
(Four Brothers, 2005) de John Singleton, protagonizada por Mark
Wahlberg, Tyrese Gibson, Terrence Howard e Cliwetel Ejiofor. Diretor
preocupado com a questão negra como Jefferson De, Singleton
acompanha quatro irmãos adotivos que se reencontram durante o
funeral de sua mãe, descobrindo que ela foi morta por uma perigosa
gangue, o que os induz à vingança.
Um dos
elementos centrais da filmografia de ação de Hollywood, o “olho
por olho, dente por dente” não é o que interessa ao realizador
brasileiro. Muito pelo contrário. O roteiro de Jefferson e Newton
Cannito extrai apenas o estreitamento do laço familiar em razão das
adversidades que os irmãos se deparam pelo caminho.
Os amigos
Macu (Caio Blat), Jaiminho (Jonathan Haagensen) e Pibe (Sílvio
Guindane) expressam este sentimento. Tudo acontece num só dia, mas a
maneira como o texto absorve esta relação em prol da narrativa
transforma estas 24 horas num pulsante retrato das diferenças e
semelhanças entre eles.
O que os
une é o Capão Redondo, espaço geográfico que se torna um
personagem à parte no filme, ameaçador e aconchegante ao mesmo
tempo. É para lá que Jaiminho, agora um rico jogador de futebol
negociado com o exterior, se dirige em busca da renovação de suas
raízes e também de refúgio.
Os outros
dois personagens também estão muito identificados com o Capão,
ainda que, como o futebolista, mantêm um sentimento contraditório,
que os levam para fora dali. Pibe não vê a hora de sair do lugar,
largando a pobreza para trás. Macu se deixa contaminar pela
violência, trabalhando para criminosos por falta de outra
oportunidade. Sua fuga é mais interiorizada, como se o espectador
lesse em sua mente a vontade de desaparecer para não cumprir a
missão que lhe deram. Em Quatro
Irmãos,
os protagonistas também carregam este olhar ambíguo sobre o local
de suas origens – um bairro pobre de Detroit.
Se no filme
de Singleton a razão para os “manos” estarem reunidos é a
morte, em Bróder
a
motivação passa a ser um aniversário. Cerimônias que
simbolicamente dizem muito dentro da trama. No americano, da morte
caminha-se para o renascimento daquele núcleo como família. No
brasileiro, a direção é inversa, indo do nascimento (a celebração
de aniversário) para a morte. Apesar do desfecho trágico, a
mensagem final de Bróder
se
revela idêntica, reforçando a importância daquelas relações.
Outra
diferença entre os dois longas reside no fato de que, em Quatro
Irmãos,
o núcleo se solidifica gradativamente para a concretização da
vingança. Em Bróder,
as distinções entre Macu, Pibe e Jaiminho desaparecem nas primeiras
cenas, culminando na sequência do campinho de futebol, muito bem
costurada e representativa da existência de uma certa igualdade
entre eles.
O que cada
um faz da vida não é importante. Só tem valor para quem está de
fora, para os demais personagens que circundam o trio. Como os
criminosos que pedem a Macu para sequestrar o amigo rico. Do contato
com os outros é que a tensão se estabelece, num rico conflito
oferecido pelo roteiro. A evocação dos tempos pretéritos, através
de uma boa dose de saudosismo, cria uma redoma de harmonia no meio
daquela zona perigosa.
Hitchcockianamente,
Jefferson não esconde para o espectador os planos perversos que se
manifestam pelos becos do Capão. O suspense deriva de nosso saber,
de uma impotência em antecipar os acontecimentos e não poder fazer
nada para impedi-la. A construção da relação dos três amigos é
tão envolvente que lamentamos a possibilidade de que ela seja
maculada.
Ao ir de
encontro à essência do homem como ser coletivo e carente de
afeição, o filme vislumbra um paraíso que está, em primeiro
lugar, acima do espaço geográfico. Assim, brilhantemente o texto
ajuda a desmistificar a ideia simplista de que o ambiente determina o
que as pessoas são. Em meio à violência do Capão, surgem
personagens que cultivam o amor verdadeiro.
O Capão
deixa de ser um local reservado apenas ao que é mau e se torna um
endereço como qualquer outro, não mais desconectado de São Paulo.
É como se o longa “descapaoredondasse”, tirando-lhe o estigma. O
bem – ideia tão desgastada e distante do mundo real – se
enfronha naquele mundo de maneira arrebatadora, que nem mesmo o final
trágico é capaz de tirar. É daí que emana o grande humanismo de
Bróder.
Dentro do
gênero “favela movie”, a produção de Jefferson De é a que
mais se destaca por este carinho dedicado aos personagens. Eles estão
envolvidos por um sentimento nostálgico, da época de crianças.
Seguindo este prisma descobrimos outra grande diferença entre os
filmes, já que, em Quatro
Irmãos,
é o “laço de sangue” que conta como gatilho para a realização
da vingança, com a harmonia entre eles surgindo no presente, a
partir desta reunião. No brasileiro o reencontro tem outra função,
apontando para duas direções. O roteiro simultaneamente caminha
para o passado e para o futuro, solidificando a relação com boas
lembranças e testando a permanência desta identificação nos dias
de hoje.
Neste
vai-e-vem narrativo aparece o suspense, que, desde o primeiro minuto,
revela para o espectador o que está para acontecer. Quanto mais nos
sentimos emotivamente envolvidos pela história de amizade
(percebendo que, mesmo com destinos tão diferentes, eles ainda
carregam uma pureza que vem dos tempos de infância), mais o texto
nos amedronta com a possibilidade de perda.
O
expediente usado por Cannito/De é muito simples e funcional,
dividindo-se entre cenas de congraçamento e violência. Dentro de
casa, onde detonam outros conflitos, não menos importantes, como a
gravidez da irmã de Macu, e no reencontro dos amigos, a atmosfera é
de festa. Lá na rua, sempre de forma furtiva, um clima de temor nos
faz constantemente lembrar que a felicidade tem hora para acabar.
O roteiro
se apropria bem do espaço, também de maneira muito simples. Macu
mora no Capão como seus pais (Cássia Kiss e Aílton Graça), mas
fora da casa onde foi criado. Deslocamento que parece ter-lhe tirado
uma espécie de escudo familiar, deixando-o suscetível ao que vem de
fora. Percebemos a importância deste elemento quando prestamos
atenção na primeira e na última cena de Bróder,
que acontecem exatamente no mesmo lugar: a residência do personagem
de Caio Blat.
A abertura
do filme acompanha, sem cortes, a saída de Macu, com o
aniversariante levantando-se pela manhã e descendo a rua para o que
será um dia mágico e trágico. No final, ele retorna à mesma casa,
desta vez para morrer, com o corpo jogado à porta. O fato de estar
naquele lugar representa, simbolicamente, a impossibilidade de chegar
até seus amigos. A música sobe e a câmera sobrevoa a região, com
Bróder chegando
ao desfecho levantando uma pungente bandeira supra-racial.
Distinções
de cor, muito presentes na produção do gênero como retrato do
fosso social brasileiro, deixam de ser o centro da problemática do
filme, com as questões humanas superando as diferenças raciais. A
amizade é valorizada indiferentemente de quem são ou de onde vêm.
Macu é branco e seus dois amigos, negros. A pele nunca é colocada
em primeiro plano. O estranhamento por esta “mistura” fica a
cargo do espectador, que logo se deixa levar pela força daquela
relação, enxergando-os como iguais. Esta é uma das grandes
contribuições de Bróder,
que também é manifestada em Quatro
Irmãos,
com Mark Wahlberg sendo o irmão branco de Tyrese Gibson, Terrence
Howard e Cliwetel Ejiofor.
Tanto Booby
Mercer (Wahlberg) quanto Macu não buscam impor a cultura branca
naquele ambiente. Estão longe de representar uma “supremacia
caucasiana”. Surgem em sentido contrário, como revela a cena em
que Blat bate
no peito e revela um orgulho de ser negro, embora não o seja. Um
orgulho não forçado e não panfletário que nunca tínhamos visto
no cinema brasileiro com esta intensidade e beleza, refletindo uma
pergunta levantada pelo diretor durante o Festival de Gramado de
2010: “Quem
é e quem não é negro no Brasil?”.
*
Repórter e crítico de cinema do jornal Hoje em Dia, de Belo
Horizonte, há 16 anos. Escreve para vários sites e publicações,
como Cinema em Cena e Programadora Brasil. Também publica no blog
Plano Geral
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