Ou: pode um roteirista branco escrever um "filme negro"?
Recentemente, em um debate público em um festival de cinema, uma jovem negra manifestou sua “decepção” ao saber que eu, um branco, escrevi o filme “Broder”, do diretor negro Jeferson De. Fiquei meio chocado: estaria eu, com minha mente branca, tirando o “pedigree artístico” de um “filme negro”?
A jovem era muito simpática e bem intencionada. Ela foi de uma sinceridade ímpar e manifestou uma opinião que me pareceu compartilhada por outras pessoas. Uma opinião racista, mas uma opinião que respeito. Como respeito qualquer outra.
Ao invés de simplesmente desconsiderar a pergunta vou fazer um exercício de entender melhor os motivos. Uma coisa é fato: eu, como branco, não sei o que significa sofrer racismo por ser negro. Ao fazer filmes sobre o tema fui descobrindo minha ignorância. Fazendo pesquisa para escrever “Cidade dos Homens” (seriado da Globo) descobri um mundo de racismo que acreditava estar extinto. Fiquei chocado ao descobrir que há preconceito para contratar atendentes de loja e garçons negros. E que muitos negros até hoje negam sua própria cor. Já em “Quanto Vale ou é por Quilo?” o roteiro investigou a lógica da escravidão e aprofundamos nas contradições raciais. E em “Broder” tive o prazer de fazer um filme com um diretor negro que superou o rancor de cor e sabe tocar nas questões raciais com a complexidade necessária.
Mas, por mais que eu pesquise o tema e me aprofunde, é evidente que eu - como branco - não poderei nunca ter a experiência de sofrer o racismo que um negro sofre. É claro que o artista pode suplantar isso e entrar na alma alheia (caso contrário Chico Buarque não escreveria sobre mulheres), mas é evidente que não tive essa experiência.
Por outro lado eu, como branco, conheço um ponto de vista que nenhum negro conhece: o ponto de vista dos “brancos racistas”. Num filme sobre racismo esse é um ponto de vista importante. Afinal os filmes que fiz não são apenas sobre “negros” e sim sobre a relação entre negros e brancos. E nenhum negro conhece esse ponto de vista do racista branco. Criado numa família branca de subúrbio pude conviver com todas as contradições do racismo brasileiro, muito mais complexo e ambíguo do que o racismo americano. Tive um tio racista que casou e amou uma negra por toda a vida. Lembro de eu, criança, na mesa de almoço, ouvindo meu tio falar coisas racistas e percebendo - pela primeira vez na vida - que minha tia era negra. Perguntei ao meu pai “Mas a tia não é negra?”. Ele mandou eu ficar quieto e nunca mais discutimos o assunto. A cor de minha tia foi um assunto tabu na família. Tabu até para ela. Tenho familiares que acham triste namorar com uma negra, mas ao apresentar a namorada negra a aceitam imediatamente. Minha impressão é que eles são racistas na teoria, não na prática. Seja por humanismo mesmo, seja por vergonha de ainda ser racista, o fato é que os negros sempre frequentaram a família.
Contei isso outro dia em outro debate, dessa vez na Fundação Palmares, com presença do movimento negro. E conclui com uma provocação: será que não chegou a hora de toleramos os racistas? Será que os racistas não são parte da diversidade que tanto defendemos?
Explico. Podemos e devemos combater o racismo, isso é consenso. Para isso já temos leis importantes que são cumpridas judicialmente. Isso é fundamental. É devido as leis que o racismo explícito tem diminuído e aparece em raros casos, como no recente episódio da estudante Mayara que fez declarações racistas em seu twitter. Mas o racismo continua sutil e disseminado. Para combater esse racismo sutil a melhor forma que conheço é tolerar os racistas. E ao tolerar ajudá-los a superar seu próprio racismo.
Para isso temos que ter compaixão e generosidade. Vale apenas lembrar que o racista não é apenas racista. Ele também é uma pessoa complexa. Ao contrário do racista caricatural da Klu Klux Klan, muitos racistas são ótimas pessoas. Tem inclusive, vergonha de ser racistas. Ser racista é uma pequena parte de seu ser. Uma parte que deve ser combatida. E a melhor forma de combater isso é tolerar. E zombar disso.
Uma outra cena me vem a mente. Um senhor branco de 80 anos esta num carro, sentado ao lado de um jovem negro de vinte e dois. O senhor branco fala animado, ele curte a companhia do jovem negro, amigo de seu filho branco. O senhor branco fala coisas racistas. Ele afirma que “não é questão de ser racista, mas os brancos e os pretos não precisam se misturar. Cada um no seu canto”. O jovem negro é ator. Não é muito preocupado com a questão racial. Nem é muito de prestar atenção nas palavras. Mas presta muita atenção na “energia”, no corpo, no movimento. O negro tolerante sente que o branco racista quer ser seu amigo. E esta certo. O senhor branco, no fundo, está impressionado por estar totalmente a vontade ao lado de um negro. É algo inédito para ele. E para expressar isso ele repete seus antigos valores, afirmando que os brancos e os negros não devem se aproximar muito. Ele fala isso ao lado do negro. Ele está sendo racista na fala, não no comportamento. Na teoria, não na prática. Eles vão a uma festa, o negro ensina o branco a tocar tambor, o senhor branco de oitenta anos adora. No fundo, sempre admirou a arte negra. Ele relaxa, curte. No fim da festa, um outro rapaz branco, que ouviu a conversa no carro, zomba do racismo do senhor branco. O senhor branco percebe, toma consciência, se envergonha. Mas se sente perdoado e aceito. Nesse dia ele se tornou menos racista.
Essa cena é real e eu contei no mesmo seminário da Palmares. Incomodou. Um palestrante do movimento negro enfatizou que ele acredita que o jovem negro deveria combater o racismo. Eu concordei. Também acho legal ficar atento e patrulhar permanentemente o racismo, mesmo o sutil. E acho que essa patrulha começa em nós mesmos, brancos e negros. Passa para os outros que estão próximos. E pode até mesmo chegar ao judiciário (em casos mais graves aonde o racismo se efetiva em ações de segregação). Tudo isso é certo. Mas também pensei que essa forma maluca de tolerar o racista pode ser uma forma de combatê-lo. Com esse senhor isso ficou claro: ele ficou menos racista no final. Temos que lembrar que combatemos o racismo, não o racista. Nosso objetivo não é exterminar o ser humano racista. É fazer ele superar isso. Afinal, não seria isso que Mandela fez? Será que viajei? Será que estou sendo racista? Fui longe demais? Admito ter duvidas. Mas quis expressá-las e debatê-las.
O fato é que o debate como um todo foi bem pesado, me senti muito acuado. Quando contei das cenas racistas de minha família uma mulher negra se levantou e perguntou se “eu estava pedindo perdão por ser racista”. Na hora tomei um susto. Na minha mente veio o fato de que racismo é crime, fiquei com medo de ser acusado, perseguido, preso. Mas ali – em público diante de uma platéia negra – decidi pedir perdão. Pedi perdão com sinceridade por todos os momentos que escapou algo racista de dentro de mim. A negra disse que aceitou, brava e superior, tal como um juiz. Fiquei acuado e parti para o ataque, me defendi dizendo que eu também perdoava o racismo da menina que se chocou ao saber que sou branco e escrevi um filme “negro”. Eles disseram que ela não foi racista. Não mesmo? Achei que era, mas não quis debater. No fundo eu acho que não devia ter contra-atacado. Não devia ter enfrentar o racismo negro. Pois ao enfrentar cai na energia da batalha. E, além disso, não posso deixar de lembrar que a menina negra era ótima, muito simpática, educada e parecia envergonhada por estar me discriminando. Era algo maior que ela, ela não tinha orgulho de seu preconceito. Tal como eu não tenho orgulho dos meus.
Foi nesse debate que percebi aonde mora o perigo da estratégia atual de combate ao racismo. Ao patrulhar e perseguir qualquer confissão de racismo, nós temos obrigado as pessoas a esconderem seu próprio racismo. O racismo é apagado, escondido. O problema é que não podemos neutralizar o invisível. Acredito que a melhor forma de combater o racismo é explicitá-lo. Botar um racista num filme pode ser uma forma de neutralizá-lo. Zombar de racistas, por exemplo, pode ser uma ótima forma de combate. Mas hoje, no reino do politicamente correto da arte brasileira, um filme que mostra um personagem racista pode ser acusado de racista. Clint Eastwood e Spike Lee seriam combatidos, teriam até dificuldade em conseguir financiamento.
Concluo com uma proposta de diálogo e convivência. Voltando a criação artística acho que uma obra se enriquece pela mistura. Mistura de artistas de diferentes origens étnicas e sociais. Essa é a melhor forma de combater o racismo. Eu, por exemplo, ao fazer filmes sobre racismo, ao me esforçar para estar no ponto de vista de negros discriminados, tomei consciência de meu próprio racismo. E pude assim, combatê-lo. É um caminho difícil, mas é o único possível. Essa é possivelmente a melhor forma de superar o racismo sutil de nossa sociedade.
terça-feira, 26 de abril de 2011
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário